quarta-feira, junho 29, 2005

Amor neutro

"Amor neutro. O neutro soprava. Eu estava atingindo o que havia procurado a vida toda: aquilo que é a identidade mais última e que eu havia chamado de inexpressivo. Fora isso o que sempre estivera nos meus olhos no retrato: uma alegria inexpressiva, um prazer que não sabe que é prazer – um prazer delicado demais para minha grosssa humanidade que sempre fora feita de conceitos grossos.
- Fiz tal esforço em me falar de um inferno que não tem palavras. Agora como falarei de um amor que não tem se não aquilo que sente, e diante do qual a palavra "amor"é um objeto empoeirado?
O inferno pelo qual eu passara – como te dizer? – fora o inferno que vem do amor. Ah, as pessoas põem a idéia de pecado em sexo. Mas como é inocente e infantil esse pecado. O inferno mesmo é o do amor. Amor é a experiência de um perigo de pecado maior – é a experiência da lama e da degradação e da alegria pior. Sexo é o susto de uma criança. Mas como falarei para mim mesma do amor que eu agora sabia?
É quase impossivel. É que no neutro do amor está uma alegria contínua, como um barulho de folhas ao vento..."

A Paixão segundo G.H.

terça-feira, junho 28, 2005

A menina e o pássaro encantado (continuação)

"...Até que não mais agüentou.
Abriu a porta da gaiola.
"- Pode ir, pássaro, volte quando quiser...".
"- Obrigado, menina. É, eu tenho que partir. É preciso partir para que a saudade chegue e eu tenha vontade de voltar. Longe, na saudade, muitas coisas boas começam a crescer dentro da gente. Sempre que você ficar com saudades, eu ficarei mais bonito.
Sempre que eu ficar com saudades, você ficará mais bonita. E você se enfeitará para me esperar...
E partiu. Voou que voou para lugares distantes. A menina contava os dias, e cada dia que passava a saudade crescia.
"- Que bom, pensava ela, meu pássaro está ficando encantado de novo...".
E ela ia ao guarda-roupa, escolher os vestidos; e penteava seus cabelos, colocava flores nos vasos...
"- Nunca se sabe. Pode ser que ele volte hoje...
Sem que ela percebesse, o mundo inteiro foi ficando encantado como o pássaro.
Porque em algum lugar ele deveria estar voando. De algum lugar ele haveria de voltar.
AH! Mundo maravilhoso que guarda em algum lugar secreto o pássaro encantado que se ama...
E foi assim que ela, cada noite ia para a cama, triste de saudade, mas feliz com o pensamento.
- Quem sabe ele voltará amanhã....
E assim dormia e sonhava com a alegria do reencontro."

A menina e o pássaro encantado

"Era uma vez uma menina que tinha um pássaro como seu melhor amigo. Ele era um pássaro diferente de todos os demais: Era encantado. Os pássaros comuns, se a porta da gaiola estiver aberta, vão embora para nunca mais voltar.
Mas o pássaro da menina voava livre e vinha quando sentia saudades...A menina amava aquele pássaro e podia ouvi-lo sem parar, dia após dia. E o pássaro amava a menina, e por isso voltava sempre.
Mas chegava sempre uma hora de tristeza.
"- Tenho que ir", ele dizia.
"- Por favor não vá, fico tão triste, terei saudades e vou chorar....".
"- Eu também terei saudades", dizia o pássaro. "-- Eu também vou chorar.
Mas eu vou lhe contar um segredo: As plantas precisam da água, nós precisamos do ar, os peixes precisam dos rios... E o meu encanto precisa da saudade. É aquela tristeza, na espera da volta, que faz com que minhas penas fiquem bonitas.
Se eu não for, não haverá saudades.
Eu deixarei de ser um pássaro encantado e você deixará de me amar.
Assim ele partiu. A menina sozinha, chorava de tristeza à noite, imaginando se o pássaro voltaria. E foi numa destas noites que ela teve uma idéia malvada.
"- Se eu o prender numa gaiola, ele nunca mais partirá; será meu para sempre. Nunca mais terei saudades, e ficarei feliz".
Com estes pensamentos comprou uma linda gaiola, própria para um pássaro que se ama muito. E ficou à espera.
Finalmente ele chegou, maravilhoso, com suas novas cores, com estórias diferentes para contar.
Cansado da viagem, adormeceu.
Foi então que a menina, cuidadosamente, para que ele não acordasse, o prendeu na gaiola para que ele nunca mais a abandonasse. E adormeceu feliz.
Foi acordar de madrugada, com um gemido triste do pássaro.
"- Ah! Menina... Que é que você fez? Quebrou-se o encanto. Minhas penas ficarão feias e eu me esquecerei das estórias...".
Sem a saudade, o amor irá embora...
A menina não acreditou. Pensou que ele acabaria por se acostumar. Mas isto não aconteceu. O tempo ia passando, e o pássaro ia ficando diferente.
Caíram suas plumas, os vermelhos, os verdes e os azuis das penas transformaram-se num cinzento triste. E veio o silêncio; deixou de cantar.
Também a menina se entristeceu. Não, aquele não era o pássaro que ela amava.
E de noite ela chorava pensando naquilo que havia feito ao seu amigo..."
Rubem Alves

terça-feira, junho 14, 2005

Querer ou não querer

"E se o Não-querer-possuir fosse um pensamento tático (finalmente um!)? E se eu continuasse a querer (embora secretamente) conquistar o outro fingindo renunciar a ele? Se eu me afastasse para possuí-lo mais seguramente?"
Fragmentos de Um Discursso Amoroso
E se o amor permanecer? E se o desejo surgir? Será que a distância pode em alguns casos aproximar? Não existem regras e grades para as asas da imaginação e da esperança...

domingo, junho 12, 2005

Depois de comer a maça não temos volta

"Seu desespero vinha de que não sabia sequer por onde e pelo que começar. Só sabia que já começara uma coisa nova e nunca mais poderia voltar à sua dimensão antiga. E sabia também que devia começar modestamente, para não se desencorajar. E sabia que devia abandonar para sempre a estrada principal. E entrar pelo seu verdadeiro caminho que eram os atalhos estreitos."
Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres

quinta-feira, junho 02, 2005

Amor (Ulisses)

"- Comigo você falará sua alma toda, mesmo em silêncio. Eu falarei um dia minha alma toda, e nós não nos esgotaremos porque a alma é infinita. E além disso temos dois corpos que nos será um prazer alegre, mudo, profundo."
Clarice Lispector em Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres

Felicidade

"Lóri estava suavemente espantada. Então era isso que era felicidade. De início se sentiu vazia. Depois seus olhos ficaram úmidos: era felicidade, mas como sou mortal, como o amor pelo mundo me trascende. O amor pela vida mortal a assassinava docemente, aos poucos. E o que é que eu faço? Que faço da felicidade? Que faço dessa paz estranha e aguda, que já está começando a me doer como uma angústia, como um grande silêncio de espaços? A quem dou minha felicidade, que já está começando a me rasgar um pouco e me assusta. Não, não quero ser feliz. Prefiro a mediocridade. Ah, milhares de pessoas não têm coragem de pelo menos prolongar-se um pouco mais nessa coisa desconhecida que é sentir-se feliz e preferem a mediocridade. Ela se despediu de Ulisses quase correndo: ele era o perigo."
Clarice Lispector em "Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres"
Me considero uma pessoa corajosa! Quero sempre me arriscar na felicidade...